quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Sinagogas da Vila Mariana e o texto “Leões, Anjos e Homens” escrito por Jaques Mendel Rechter

A partir da última postagem sobre a comunidade judaica da Vila Mariana, suas sinagogas e o início deste blog, em 13 de janeiro de 2023, recebi alguns comentários.

Um deles, foi feito por Jaques Mendel Rechter, em que solicitou resgatar o texto enviado, há tempos, sobre os 2 leões sobre o Aron, bem como acrescentar a família do avô materno, Baumohl, Osias (Germano) Heschel Kram Baumohl Z’’L, um dos fundadores e diretor de obras do antigo Peretz e Sinagoga. Jaques Mendel Rechter possui uma foto da Diretoria, tentará localizar e irá encaminhar.

O outro comentário foi feito por Eduardo Milner, que escreveu: “Minha família fez parte desta comunidade por muitos anos, além de todos os irmaos terem estudado no Peretz. Minha mãe era Dratcu de solteira , e depois acrescentou Milner ao seu nome.”

E, aqui, compartilho novamente a publicação realizada neste blog em 23 de agosto de 2016, com o texto enviado por Jaques Mendel Rechter: 

Leões, Anjos e Homens - por Jaques Mendel Rechter

No Shabat da Sinagoga do Cambuci, Jaques Mendel Rechter e eu conversávamos sobre a Sinagoga Mordechai Guertzenstein, quando, para minha surpresa, ele comentou sobre um detalhe relativo aos dois leões que ladeavam as Tabuas da Lei, na antiga sinagoga. Vejam o tocante conto abaixo, encaminhado por Jaques:

"Desde muito pequeno, quando acompanhava meu avô à sinagoga nas grandes festas eu ficava rodeado de adultos e por cima de seus ombros e dos espaldares dos bancos eu só conseguia enxergar as Tabuas da Lei ladeadas pelos leões que ficavam sobre o Aron a Kodesh.

Eram dois leões dourados com o corpo empinado, apoiados nas patas traseiras e com as dianteiras sobre a representação com o topo redondo das Tabuas da Lei.  O Leão da esquerda tinha expressão de bravo e o da direita tinha cara de bonzinho.

Esta é uma das lembranças mais antigas que guardo da Sinagoga que existia nos fundos do Colégio I.L. Peretz, onde estudei, na Rua Madre Cabrini no bairro da Vila Mariana.

Também havia um homem da geração do meu avô que por ser baixinho eu conseguia enxergar o rosto abaixo da linha dos ombros dos outros. Seus olhos claros azuis e bondosos eram sempre acompanhados de um sorriso terno e largo quando me olhava. Seu rosto avermelhado contrastava com os cabelos brancos.

Maior e mais velho um pouquinho eu já conseguia avistar por cima dos bancos e ombros outro homem da mesma geração, também baixinho. Tinha olhos claros acinzentados emoldurados por óculos de grossa armação preta que reforçavam a sua expressão sempre muito séria. Era o diretor de culto, chazan, bal tefilá ou gabai, ou cada vez exercia uma das funções, não sei.

Dele o que lembro além da seriedade é que sempre tentava colocar ordem e pedir silencio no meio das muitas conversas em idiche ou português com sotaque de quem dizia “Shoime Isruel” com sendo “Shemá Israel”. Obviamente era ele quem sempre dava as três batidas com a palma da mão na mesa como medida extrema de pedido de silêncio.

Eu associava cada um dos homens a cada um dos leões, o bravo e o bonzinho. Intuía desde então que as duas características opostas de personalidade ajudavam a compor algum tipo de unidade mística, afinal as expressões humanizadas não deveriam estar ali na cara dos leões por acaso.

Esta unidade eu também percebi na minha última ida com meu avó àquela sinagoga, com todos nós, tanto eu, ele e os da sua geração que ainda estavam entre nós quase 15 anos mais velhos.

Foi em Simchá Torá, a sinagoga estava vazia e o dourado dos leões menos brilhante.

Total contraste com as celebrações do já antigamente de então, quando a sinagoga ficava lotada e muito iluminada, eram distribuídas para as crianças bandeirinhas de Israel feitas de papel montadas numa vareta verde e quadrada de madeira onde vinha espetada uma maça com uma velinha, uma montagem que durava poucos minutos. Tais bandeirinhas, velas e maçãs também são inesquecíveis, como os dois leões e os dois homens.

Éramos poucos naquela noite, mas a alegria pela renovação do ciclo anual de leitura da Torá foi compartilhada serenamente por todos, com a ajuda de uns goles sorvidos em copinhos de vidro bem pequenos aos votos de “Le Chaim”. 

Já no final do serviço religioso que estava sendo tocado pelo homem sério de óculos, surge do fundo da sinagoga o homem de olhar terno e rosto muito mais avermelhado que o normal e com jeito travesso joga uma toalha de mão embolada nas costas do homem sério, rindo bastante da sua molecagem.

O homem sério interrompeu a reza, se virou encarou por cima da armação dos seus óculos o seu provocador parceiro, não podendo evitar um sorriso. Devia ser alguma piada entre eles e que só eles entendiam. Voltou a rezar compenetrado. 

Lembro de alguém por perto falando em ídiche que ainda pude entender, algo como “hoje também é dia dos anjos se alegrarem”.

Nunca mais estive naquela sinagoga e as lembranças das bandeirinhas, homens e leões jamais me deixaram, mesmo que a sinagoga não mais exista fisicamente, apenas na memória dos que a frequentaram.

Só comecei a refletir sobre anjos muitos anos depois. Os anjos que sempre me intrigaram são os dois que acompanham os que saem das sinagogas para suas casas na noite de Shabat.

Quanto aos leões, até hoje nunca consegui a explicação definitiva do porque um era bravo e outro bonzinho, nem dos rabinos e estudiosos a quem formulei minha dúvida, inclusive alguns nunca tinha observado o detalhe das feições dos leões.

Procurei descobrir algum padrão desta representação nas capas das diversas Torot que eu via e nas cortinas dos diversos Aronim ao longo dos anos, mas não consegui estabelecer nenhum, inclusive em muitos casos os leões são absolutamente simétricos, com expressão neutra. Também na Porta dos Leões de Jerusalém, pelo seu próprio estado físico não é possível divisar qualquer expressão nas suas caras. No brasão e bandeira da atual Jerusalém, nem são dois leões, é um só que aparece.

O assunto foi ficando adormecido ao longo dos anos, cheguei a acreditar que as feições brava e boazinha dos leões deveria ser alguma cópia de alguma liberalidade de algum artista e construtor de alguma antiga sinagoga do leste europeu, trazida também como repetição para o novo mundo.

Mais de 50 anos depois de começar a observar os leões dourados ladeando as tábuas da lei na antiga sinagoga da Vila Mariana, qual não foi minha surpresa ao encontra-los novamente em Israel, desta vez no piso mosaico de uma sinagoga de quase 20 séculos descoberta numa escavação às margens do Lago Tiberíades. Lá também o leão da esquerda é bravo e o da direita bonzinho.

Perguntei ao amigo e guia que nos acompanhava sobre o fato e ele ficou mais surpreso ainda sobre a feição dos leões, coisa que ele nunca tinha reparado ou ouvido a respeito.

De imediato pelo celular ele levou a questão a seu professor e fonte no Ministério de Turismo de Israel, a um Rabino, a um Historiador e ninguém sabia informar do porque, nem mesmo haviam percebido até então o objeto da questão.

Disposto a tirar a coisa a limpo e descaracterizar uma simples coincidência, naquele mesmo dia foi incluída na nossa programação a visita a uma outra escavação de sinagoga de mais de uma quinzena de séculos situada onde agora há um Kibutz, também na Galiléia.

Novamente os dois leões, um bonzinho e outro bravo no piso de mosaico...

Dois dias e vários telefonemas depois, até hoje, continuamos sem saber, nosso guia e eu, o porque das expressões dos leões...

De volta ao Brasil alguns meses depois, perdido em pensamentos quando estava voltando da sinagoga próxima da minha casa vindo do Cabalat Shabat, eu refletia sobre a prédica do Rabino acerca da Parashá da semana, onde Bilam ao invés de amaldiçoar o povo de Israel o abençoou e profetizando comparou-o a um Leão, animal que não pode ser domesticado e que mesmo estando aparentemente por baixo, sempre se ergue.

Obviamente estava tentando achar a conexão entre a comparação do povo judeu com um leão e a representação dos dois leões com feições humanizadas opostas ladeando as tabuas da Lei.

Vindos em minha direção na mesma calçada percebi quatro homens, todos obviamente judeus ortodoxos pelos seus trajes.  A frente do grupo um pai com seu filho adolescente, todos certamente vindo de alguma outra sinagoga e indo para casa.

Achei o grupo estranho, nunca havia visto outros religiosos ou mesmo ortodoxos no bairro salvo alguns que frequentavam a mesma sinagoga de onde eu estava vindo e estes quatro homens não tinham vindo de lá.

A me aproximar cumprimentei desejando Shabat Shalom, que foi retribuído com surpresa e carinho pelo pai e filho e com naturalidade pelos homens que vinham atrás, mesmo com minhas roupas de não ortodoxo.

Cruzando com os dois homens de trás, o mais próximo me encarou por cima de seus óculos com um sorriso de canto de boca, dando um meneio quase que imperceptível com a cabeça, enquanto que o outro me dirigiu um amplo e afetuoso sorriso.

Passos depois estanquei ao perceber que os dois homens que acompanhavam o pai e filho tinham os mesmos rostos e expressões dos dois homens da antiga sinagoga, rostos e expressões que emergiram absolutamente nítidos das profundezas da minha mente, após décadas de esquecimento.

Virei e só vi pai e filho, não havia mais ninguém.

Creio que não foi imaginação ou alucinação, eram quatro vindos na minha direção, trocamos cumprimentos e agora eu só via dois.

Só pode ter sido um vislumbre dos dois anjos de Shabat acompanhando pai e filho...

Como se ouvindo uma instrução, talvez dos meus próprios anjos, prossegui caminhando sem me voltar para trás até minha casa para o Shabat em família.

Até hoje não sei a razão pela qual me foi concedido o vislumbre de anjos com rostos e expressões emprestadas de dois homens de muito antigamente da minha vida, um bravo e um bonzinho, que sempre associei aos dois leões dourados, do mesmo jeito que ainda não sei a explicação das suas expressões humanizadas opostas.

Tenho muitas dúvidas e quase nenhuma certeza, mas desconfio de muitas coisas. E uma das minhas poucas certezas é que tudo tem um nexo em algum tipo de unidade cuja explicação talvez um dia eu descubra qual é."

Acompanhem nas próximas postagens, mais detalhes.

E aqui pergunto também se vocês teriam alguma informação sobre as comunidades judaicas da capital e das cidades do interior paulista. Fotos, memórias, documentos? Histórias de sua família, quando chegaram e o porquê da escolha da cidade em que se estabeleceram, como era a comunidade judaica e sua integração com a comunidade local, as sinagogas, escolas, como e onde comemoravam as festas? 

Escrevam para myrirs@hotmail.com . Vamos resgatar nossas raízes... 

3 comentários:

  1. Lindo texto, Jacques, emocionante mesmo.Parabéns!

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  2. Adorei esta história.
    Dá para imaginar inúmeras teses.

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  3. O avô do x marido parece que construiu

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