No Shabat da Sinagoga do Cambuci, Jaques Mendel Rechter e eu conversávamos sobre a Sinagoga Mordechai Guertzenstein, quando, para minha surpresa, ele comentou sobre um detalhe relativo aos dois leões que ladeavam as Tabuas da Lei, na antiga sinagoga. Vejam o tocante conto abaixo, encaminhado por Jaques:
"Desde muito pequeno quando acompanhava meu
avô à sinagoga nas grandes festas eu ficava rodeado de adultos e por cima de
seus ombros e dos espaldares dos bancos eu só conseguia enxergar as Tabuas da
Lei ladeadas pelos leões que ficavam sobre o Aron a Kodesh.
Eram dois leões dourados com o corpo
empinado, apoiados nas patas traseiras e com as dianteiras sobre a
representação com o topo redondo das Tabuas da Lei. O Leão da esquerda
tinha expressão de bravo e o da direita tinha cara de bonzinho.
Esta é uma das lembranças mais antigas
que guardo da Sinagoga que existia nos fundos do Colégio I.L. Peretz, onde
estudei, na Rua Madre Cabrini no bairro da Vila Mariana.
Também havia um homem da geração do meu avô
que por ser baixinho eu conseguia enxergar o rosto abaixo da linha
dos ombros dos outros. Seus olhos claros azuis e bondosos eram sempre
acompanhados de um sorriso terno e largo quando me olhava. Seu rosto
avermelhado contrastava com os cabelos brancos.
Maior e mais velho um pouquinho eu já conseguia
avistar por cima dos bancos e ombros outro homem da mesma geração, também
baixinho. Tinha olhos claros acinzentados emoldurados por óculos de grossa
armação preta que reforçavam a sua expressão sempre muito séria. Era o diretor
de culto, chazan, bal tefilá ou gabai, ou cada vez exercia uma das funções, não
sei.
Dele o que lembro além da seriedade é que
sempre tentava colocar ordem e pedir silencio no meio das muitas conversas em
idiche ou português com sotaque de quem dizia “Shoime Isruel” com sendo
“Shemá Israel”. Obviamente era ele quem sempre dava as três batidas com a palma
da mão na mesa como medida extrema de pedido de silêncio.
Eu associava cada um dos homens a cada um dos
leões, o bravo e o bonzinho. Intuía desde então que as duas características
opostas de personalidade ajudavam a compor algum tipo de unidade mística,
afinal as expressões humanizadas não deveriam estar ali na cara dos leões por
acaso.
Esta unidade eu também percebi na minha última
ida com meu avó àquela sinagoga, com todos nós, tanto eu, ele e os da sua
geração que ainda estavam entre nós quase 15 anos mais velhos.
Foi em Simchá Torá, a sinagoga estava vazia e
o dourado dos leões menos brilhante.
Total contraste com as celebrações do já
antigamente de então, quando a sinagoga ficava lotada e muito iluminada, eram
distribuídas para as crianças bandeirinhas de Israel feitas de papel
montadas numa vareta verde e quadrada de madeira onde vinha espetada uma maça
com uma velinha, uma montagem que durava poucos minutos. Tais bandeirinhas,
velas e maçãs também são inesquecíveis, como os dois leões e os dois homens.
Éramos poucos naquela noite, mas a alegria
pela renovação do ciclo anual de leitura da Torá foi compartilhada serenamente
por todos, com a ajuda de uns goles sorvidos em copinhos de vidro bem pequenos
aos votos de “Le Chaim”.
Já no final do serviço religioso que estava
sendo tocado pelo homem sério de óculos, surge do fundo da sinagoga o homem de
olhar terno e rosto muito mais avermelhado que o normal e com jeito travesso
joga uma toalha de mão embolada nas costas do homem sério, rindo bastante da
sua molecagem.
O homem sério interrompeu a reza, se virou
encarou por cima da armação dos seus óculos o seu provocador parceiro, não
podendo evitar um sorriso. Devia ser alguma piada entre eles e que só eles
entendiam. Voltou a rezar compenetrado.
Lembro de alguém por perto falando em ídiche
que ainda pude entender, algo como “hoje também é dia dos anjos se alegrarem”.
Nunca mais estive naquela sinagoga e as
lembranças das bandeirinhas, homens e leões jamais me deixaram, mesmo que a
sinagoga não mais exista fisicamente, apenas na memória dos que a frequentaram.
Só comecei a refletir sobre anjos muitos anos
depois. Os anjos que sempre me intrigaram são os dois que acompanham os que
saem das sinagogas para suas casas na noite de Shabat.
Quanto aos leões, até hoje nunca consegui a
explicação definitiva do porque um era bravo e outro bonzinho, nem dos rabinos
e estudiosos a quem formulei minha dúvida, inclusive alguns nunca tinha
observado o detalhe das feições dos leões.
Procurei descobrir algum padrão desta
representação nas capas das diversas Torot que eu via e nas cortinas dos
diversos Aronim ao longo dos anos, mas não consegui estabelecer nenhum,
inclusive em muitos casos os leões são absolutamente simétricos, com expressão
neutra. Também na Porta dos Leões de Jerusalém, pelo seu próprio estado físico
não é possível divisar qualquer expressão nas suas caras. No brasão e bandeira
da atual Jerusalém, nem são dois leões, é um só que aparece.
O assunto foi ficando adormecido ao longo dos
anos, cheguei a acreditar que as feições brava e boazinha dos leões deveria ser
alguma cópia de alguma liberalidade de algum artista e construtor de alguma
antiga sinagoga do leste europeu, trazida também como repetição para o novo
mundo.
Mais de 50 anos depois de começar a observar
os leões dourados ladeando as tábuas da lei na antiga sinagoga da Vila Mariana,
qual não foi minha surpresa ao encontra-los novamente em Israel, desta vez no
piso mosaico de uma sinagoga de quase 20 séculos descoberta numa escavação às
margens do Lago Tiberíades. Lá também o leão da esquerda é bravo e o da direita
bonzinho.
Perguntei ao amigo e guia que nos acompanhava
sobre o fato e ele ficou mais surpreso ainda sobre a feição dos leões, coisa
que ele nunca tinha reparado ou ouvido a respeito.
De imediato pelo celular ele levou a questão
a seu professor e fonte no Ministério de Turismo de Israel, a um Rabino, a um
Historiador e ninguém sabia informar do porque, nem mesmo haviam percebido até
então o objeto da questão.
Disposto a tirar a coisa a limpo e
descaracterizar uma simples coincidência, naquele mesmo dia foi incluída na
nossa programação a visita a uma outra escavação de sinagoga de mais de uma
quinzena de séculos situada onde agora há um Kibutz, também na Galiléia.
Novamente os dois leões, um bonzinho e outro
bravo no piso de mosaico ....
Dois dias e vários telefonemas depois, até
hoje, continuamos sem saber, nosso guia e eu, o porque das expressões dos
leões...
De volta ao Brasil alguns meses depois,
perdido em pensamentos quando estava voltando da sinagoga próxima da minha casa
vindo do Cabalat Shabat, eu refletia sobre a prédica do Rabino acerca da
Parashá da semana, onde Bilam ao invés de amaldiçoar o povo de Israel
o abençoou e profetizando comparou-o a um Leão, animal que não pode ser
domesticado e que mesmo estando aparentemente por baixo, sempre se ergue.
Obviamente estava tentando achar a conexão
entre a comparação do povo judeu com um leão e a representação dos dois leões
com feições humanizadas opostas ladeando as tabuas da Lei.
Vindos em minha direção na mesma calçada
percebi quatro homens, todos obviamente judeus ortodoxos pelos seus
trajes. A frente do grupo um pai com seu filho adolescente, todos
certamente vindo de alguma outra sinagoga e indo para casa.
Achei o grupo estranho, nunca havia visto
outros religiosos ou mesmo ortodoxos no bairro salvo alguns que frequentavam a
mesma sinagoga de onde eu estava vindo e estes quatro homens não tinham vindo
de lá.
A me aproximar cumprimentei desejando Shabat
Shalom, que foi retribuído com surpresa e carinho pelo pai e filho e com
naturalidade pelos homens que vinham atrás, mesmo com minhas roupas de não
ortodoxo.
Cruzando com os dois homens de trás, o mais
próximo me encarou por cima de seus óculos com um sorriso de canto de boca,
dando um meneio quase que imperceptível com a cabeça, enquanto que o outro me
dirigiu um amplo e afetuoso sorriso.
Passos depois estanquei ao perceber que os
dois homens que acompanhavam o pai e filho tinham os mesmos rostos e expressões
dos dois homens da antiga sinagoga, rostos e expressões que emergiram
absolutamente nítidos das profundezas da minha mente, após décadas de
esquecimento.
Virei e só vi pai e filho, não havia mais
ninguém.
Creio que não foi imaginação ou alucinação,
eram quatro vindos na minha direção, trocamos cumprimentos e agora eu só via
dois.
Só pode ter sido um vislumbre dos dois anjos
de Shabat acompanhando pai e filho...
Como se ouvindo uma instrução, talvez dos
meus próprios anjos, prossegui caminhando sem me voltar para trás até minha
casa para o shabat em família.
Até hoje não sei a razão pela qual me foi
concedido o vislumbre de anjos com rostos e expressões emprestadas de dois
homens de muito antigamente da minha vida, um bravo e um bonzinho, que sempre
associei aos dois leões dourados, do mesmo jeito que ainda não sei a explicação
das suas expressões humanizadas opostas.
Tenho muitas dúvidas e quase nenhuma certeza,
mas desconfio de muitas coisas. E uma das minhas poucas certezas é que tudo tem
um nexo em algum tipo de unidade cuja explicação talvez um dia eu descubra qual
é."